domingo, 2 de dezembro de 2012

Minha Infância Solitária-Fabrício Carpinejar


Eu era tão sozinho na infância que se aparecesse um fantasma pra falar comigo não ficaria com medo, mas conversaria com ele. Pediria para que a assombração não se assustasse, que saísse debaixo da cama, que viesse descrever os aborrecimentos e desabafar as circunstâncias da morte.

Puxaria uma cadeira para aliviar seu cansaço de atravessar paredes.

Se viesse arrastando correntes, abriria o cadeado com a chave pequeninha do porão, que funcionava maravilhosamente bem com fechaduras desconhecidas.

Olharíamos as ilustrações de Alice no País das Maravilhas e nadaríamos no lago de lágrimas da personagem.

Emprestaria um dos meus três abrigos escolares, afinal, os mortos costumam se vestir mal.

Iríamos juntos, de mãos dadas, para o colégio.

Dividiria minha Pastelina e meu Nescau.

Mostraria qual o banco de pedra predileto do recreio, com vista privilegiada das rodinhas das meninas bonitas.

Poderia chutar pinha no meio da rua: o bueiro seria o nosso gol.

Assistiríamos ao trânsito do banco de trás do Opala amarelo do pai.

Insistiria para a mãe preparar bolinho de arroz.

Ele me ajudaria a escalar árvores e muros.

Perguntaria se ele gostaria de brincar de gladiador com as tampas do lixo.

Teria alguém para andar de gangorra e fazer peso ao meu corpo.

Teria alguém para evitar o fim de pedra dos passarinhos.

Teria alguém para chorar a separação dos pais.

Teria alguém para me confortar nos exercícios de matemática.

Teria alguém que não me acharia estranho, esquisito, monstro.

Teria já alguém confirmado para minha festa de aniversário.

Eu seguraria o botão do bebedor enquanto ele se curvaria ao esguicho.

Ele me avisaria das pedras irregulares da praça.

Jogaríamos miolo de pão para as pombas.

O fantasma seria meu amigo predileto, meu confidente, meu guia de estimação. Muito melhor do que amigo imaginário – ostenta mais experiência.

Jamais recusaria sua visita.

Só esnoba o invisível quem não é carente. Sempre fui faminto de acontecimentos. Sempre fui ouvinte porque não tinha com quem trocar confidências até os oito anos.

Escutava vento, escutava chuva, escutava até o sol.

Vivi um claustro involuntário. Fui um monge mirim. Meus olhos cresceram pelo excesso de palavras por dizer.

Nunca desperdiçaria a chegada de um fantasma. Salvaria a minha solidão.




Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 27/11/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 17266

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